A primeira travessia do Cabo Horn pela Marinha Brasileira em 1852
Este relato é sobre o primeiro grande cruzeiro da Marinha brasileira ao Oceano Pacífico em 1852. A Baiana (o nome também aparece grafado com h) era uma corveta de madeira, construída no Arsenal de Marinha do Rio e Janeiro, “segundo o risco” do construtor naval Joaquim José de Sousa. Seu lançamento ao mar, em outubro de 1847, foi assistido pelo próprio Imperador. Tornou-se célebre por ser o primeiro navio da Marinha brasileira a cruzar o cabo Horn, mas teve um custo para a sua tripulação. A grafia do texto foi mantida do original.
Entre os grandes e indeléveis cruzeiros de nossa Armada, pelo fulgor e ensinamento que deles resultaram para seu orgulho e da Nação, merece ser lembrado aquele de 1852, totalmente a vela, em que a legendária corveta "Baiana" levou, pela primeira vez, ao Pacífico a nossa Bandeira. Era Imperador o Senhor Dom Pedro II. Era Ministro dos Negócios da Marinha o Cons. ° Zacarias de Góis e Vasconcelos. Era Encarregado do Quartel General o Chefe-de-Esquadra Miguel de Sousa Melo e Alvim.
Já anteriormente os Ministros Holanda Cavalcanti e Tosta haviam mandado ao cabo da Boa Esperança e às Malvinas as corvetas "Dona Francisca" e "Bertioga".
Impôs-se, assim, a arrojada empresa dessa andadura ao Pacífico, sob o comando de Francisco Manuel Barroso da Silva e à imediatice de Francisco Pereira Pinto, e com homens das mais diferentes graduações e encargos, que tanto iriam concorrer para a dignidade e o enobrecimento do estandarte que conduziam. Só o relato que segue, em extrato, dará idéia do que foi a alentada e intensa viagem, de aplicação e treinamento:
19 de janeiro - As 8.30 hs deixou a amarração no porto do Rio, rebocada pelo vapor "Amazonas" barra fora. Ao S da Rasa o vapor largou o reboque e passando perto da corveta fez tocar a música. A marinhagem subiu às vêrgas e entoando os três vivas do preceito despediu-se do "Amazonas", que correspondeu com o Hino Nacional.
Calma. Alguns cirrus. Todos os corações comovidos Saudades e esperanças na fisionomia do mais rude de seus tripulantes.
20 de janeiro - Às 2 hs começa a soprar SSE. Agitam-se as águas. Mareando em gáveas, joanetes e papafigos, aproa ao SO 4 S. Por esse tempo aparece, outra vez, o "Amazonas", rebocando a corveta "Imperial Marinheiro", que deixa a pouca distância da "Baiana", voltando ao pôrto. A "Imperial" também se destinava aos mares do Sul. Mas acalma a aragem e ficam ambos os navios sem seguimento algum.
21 de janeiro - À 0 h marca-se a Redonda por 5° NO magnético, achando-se ao mesmo tempo a altura meridiana do sol: 86° 13'. Lat. observada 38° 25' S; long. 43° 16' O Gw. Ventos bonançosos ao correr ao dia. Conserva-se à vista a "Imperial-Marinheiro" e distinguem-se velas no horizonte.
22 de janeiro - Pelas 4 hs arriou-se escaler para levar a bordo da "Imperial-Marinheiro" um homem da marinhagem, doente, e que era um dos recrutas embarcados pouco antes da partida.
Imperial-Marinheiro
23 de janeiro - Perde-se a terra de vista. As 18 hs. rezou-se a ladainha.
24 de janeiro - Celebrou-se o Santo Sacrifício da Missa às 8 hs. por ser domingo. Rondou o vento para SO, aumentando progressivamente de intensidade. Mete-se à bolina, andando-se 8' ,5 por hora. Mar agitado. A "Imperial-Marinheiro" faz sinal, ao quarto-dalva, de haver falecido um homem da marinhagem, o enfêrmo que a 22 lhe fôra levado. Lat., ao meio-dia, de 26° 37' 30" S; long. 43° 28' 45" O Gw. Indícios de SO e chuvas.
25 de janeiro - Começou o barômetro a descer. Do NO rondou o vento para N e NO. Ao anoitecer soprava a NO, com cúmulus e rajadas fortes. Rizou-se nos 3°1! e assim navegou-se tôda a noite.
27 de janeiro - Vento SO com menor intensidade. Sinal de bom tempo, pelos indícios do céu e do barômetro. Lat. 32° 15' 23" S; long. 42° 58' 20" O Gw.
28 de janeiro - Mandaram-se ofícios ao comte. da "Imperial-Marinheiro". Içado o escaler, marcou-se de novo e seguiu-se, fazendo-se-lhe pouco depois o sinal 423 - "Cumprir a comissão ordenada".
29 e 30 de janeiro - Do meio-dia em diante escasseou o vento até acalmar às 9 hs. Mas continua-se a navegar com proa de SO 4 O, mar de pequena vaga.
Já não se vê a "Imperial-Marinheiro", que, entretanto, ao amanhecer do dia, reaparece distante. E como ambos os navios se dirigem ao vértice de um ângulo formado por seus rumos, encontram-se às 11 hs. Remetem-se ainda alguns ofícios à "Imperial" e afastam-se os dois. Descem os termômetros e barômetros prometendo SO, mas a cacimba da noite indica vento oposto. E braceja-se pelo redondo, o vento a NE.
31 de janeiro - Calma podre às 11 hs às 13 atmosfera encinzeirada, horizontes próximos, cacimba. Caminha-se com vento SSE fraco. Termômetros e barômetros descendo. Às 20 hs avistou-se um navio ao rumo NO.
1º de fevereiro - Tempo encinzeirado. Mar de pequenas vagas. Vento bonançoso do N: NNE. Ás 17 hs refrescou. Ao escurecer avistou-se um navio de três mastros. Ás 20 hs. ainda não era noite completa. Pouco a pouco tolda-se o céu. Chove, e tudo anuncia mau tempo. Aumentaram os Vagalhões. Lat. 39° 16' S e long. 46° 54' O Gw, ao meio-dia.
2 de fevereiro - Mau tempo. Vento rijo de O e ONO. Grandes vagalhões. Às 5 hs caiu forte aguaceiro. Carregaram-se os papafigos e meteram-se as gáveas nos 4º. Chamou-se o vento para OSO. Às 12 hs, tornando-se o céu mais ameaçador e os aguaceiros mais fortes, ferrou-se a gata e caçou-se o latino grande nos 2°.
3 de fevereiro - Continua o tempo borrascoso. Às 2 hs começa a bonançar. Tiram-se as gáveas dos 4º e 3°. Mas das 12 em diante recrudesce a fôrça do temporal, ficando a noite muito escura, com fortes aguaceiros e fuzis de tôdas as partes.
4 de fevereiro - Às 2 hs o tempo vai limpando e às 8 já é bom. Volta, entanto, a nublar-se a atmosfera, com aguaceiros.
5 de fevereiro - Ventos de SO a NO, com mar de vagalhões. Noite boa.
6 de fevereiro - Caíram aguaceiros com vento de NE, que durou pouco. Lat. 45° 19' S; long. 52° 12' O Gw, ao meio dia. Lua nova.
7 de fevereiro - Mar chão. Vento regular de OSO. Anda-se a 9 milhas, à bolina. Caindo a noite repetem-se os aguaceiros, e riza-se nos 3°.
8 de fevereiro - Melhora o tempo, que fica belo. Passa a barlavento uma galera, rumo NE.
9 de fevereiro - Vento forte NO e NNO. Chuvas. Relâmpagos. Santelmos nos lais das vêrgas. Lat. 47° 8' S; long. 57° 34' O Gw, ao meio-dia.
10 de fevereiro - Tempo neblinando. Já se está nas vizinhanças das Malvinas, onde a "Imperial" também encontrou muita cerração. Muitas plantas marinhas de haste e fôlhas compridas, bem diferentes dos sargaços. Diferença acentuada de temperatura. Lat. 47° l' S; long. 59° O Gw.
11 de fevereiro - Levanta a cerração e torna-se o tempo excelente. Pruma-se em 78 braças de fundo, areia fina. Lat. 47° 53' S; long. 61° 46' O Gw.
12 de fevereiro - Calma, todo o dia. Continuam a passar plantas marinhas, provenientes de baixios, e que advertem perigos. Seguem o navio, barulhentos, bandos de alcatrazes e de almas-de-mestre.
13 de fevereiro - Avista-se um navio, ao fim da tarde.
14 de fevereiro - Avistam-se mais duas velas, uma ao rumo NE, e a outra, que também demanda o cabo Horn, sem o mastaréu de joanete, e que parece a fragata francesa "La Forte". Barômetros descendo como nunca. Riza-se nos 4°s, por cautela, e navega-se à noite, assim, com as gáveas e papafigos, soprando SO bonançoso e estando o tempo escuro e carregado.
15, 16, 17 e 18 de fevereiro - Friagem, com nimbus crescendo. Manda-se carregar e ferrar a vela grande e o traquete, mas já às 9 hs faltam as escotas das três qáveas, ao mesmo tempo. Escapa o traquete, que ainda não estava bem ferrado. E passam as quatro velas a dar sapatadas, com estampidos como de canhão! - Ferra ! - Ferra ! - bradam vozes de manobra. Mas o traquete faz-se em tiras, por lhe faltar um dos estigues.
Consegue-se carregar as gáveas. Ferra-se, apenas, a gata, mas as outras duas velas dificilmente se abafaram a barlavento. Todavia era forçoso ferrá-las. Açoutadas pela violência do vento, e em consequência do frio perdida a sensibilidade dos dedos, alguns marinheiros descem, acobardados... Compelidos, porém, pelos oficiais, obedecem e voltam às vêrgas. Entretanto aumenta o temporal de intensidade, enquanto o navio e sua gente fazem esforços superiores para dominá-lo.
Houve, em razão disso, desgraças. Antônio José Fernandes, marinheiro de classe, com notável intrepidez auxiliava seus companheiros a ferrar o velacho. Mas, arrancado da vêrga por uma sapatada do pano, foi arrojado de encontro à amarra, no convés, e horas depois morria. Antônio Miguel, imperial-marinheiro, caiu da gávea-grande, abismou-se no mar, e desapareceu para sempre. John Herbert, natural dos Estados Unidos, partiu um fêmur em consequência de queda. Outro homem da marinhagem, caindo da vêrga do velacho, embaraçou-se milagrosamente no amantilho do pau de surriola de BB e, escapando assim de ir ao mar, ficou contudo molestado. Foi de louvar o procedimento dos guardas-marinha Antônio Carlos de Mariz e Barros, Caio Pinheiro de Vasconcelos e Francisco Romano Stepple da Silva, que espontâneamente subiram às gáveas e, com seus exemplos, animaram os marinheiros às ásperas fainas da tempestade.
A aquarela nos mostra a Baiana na altura do Cabo Horn, à vista de um iceberg
19 de fevereiro - A vista o cabo de Horn, na distância aproximada de vinte milhas. Rumo de marcação: 25° NO magnético; variação 25° NE. A meia-noite: lat. 56° 43' 24"; long. 67° 14' 24" O Gw. Avistadas as ilhas Diego Ramírez, a 10'.
20 de fevereiro - Nuvens crepusculares de coloração amarela, indício de vento fresco. Com efeito, às 22 hs caiu SSE rijo. Lat. 56° 45' S, a mais austral de toda a travessia; long. 71° 40' O Gw.
21 de fevereiro - Para a noite abonança o SSE, apesar do mar de enormes vagalhões. Grandes círrus na parte superior da atmosfera.
24 de fevereiro - Rondou o vento para NO, soprando com fôrça extraordinária.
26 de fevereiro - Apesar da fôrça do vento, e dos vagalhões, os dias são lindos. Ao pôr do sol enfileiramse no horizonte nuvens brancas muito brilhantes.
27 de fevereiro - Das 9 às 12 hs ONO forte, acompanhado de repetidos aguaceiros.
28 de fevereiro - Procurando-se seguir a longo 80° até chegar aos 50° de lat., para evitar os maus ventos variáveis e as correntes que, com fôrça, se dirigem para o estreito de Magalhães, levantando, não raro, serras de mar tão altas que não é agradável lutar com elas...
2 de março -Observa-se a temperatura do mar e da atmosfera. Ventos fortes rondando de OSO, ONO e NO, o que muito contrariava. Faleceu às 14 hs., de febre amarela, o praticante Antônio Moreira de Matos, filho de pessoas abastadas de Campos. Pelas 18 hs., ante tôda a guarnição, o capelão de bordo encomendou sua alma a Deus e, pelo portaló de BE, feitas as últimas orações e cerimônias, foi seu cadáver lançado ao mar, na lat. 54° 15' S e long. 81° 7' O Gw.
3 e 4 de março - Ventos NO e ONO, rijos, e mar de vagalhões. Panos quase sempre rizados e, às vêzes, nos últimos.
5 de março - Passa às 6 hs uma galera inglêsa, rumo S, com tôda fôrça de vela. Adoece de febre amarela o praticante Manuel Roque da Silveira. Lavram a bordo reumatismos, febres, cólicas, constipações. Há trinta praças na lista dos enfermos. A mudança rápida de temperatura, a contínua umidade em tôdas as cobertas, a alimentação saturada de carne salgada e o pouco abrigo concorreram para isso, mau grado o zêlo e competência do Doutor Carlos Frederico, médico de bordo.
Já não se encontram alcatrazes, nesses lados, mas sim grandes albatrozes, de corpo branco e asas negras com extremidades que, às vêzes, vão a 18 pés. Lat. 52° 55' 51" S; long. 80° 3' 26" O Gw, ao meio-dia.
6 de março - Às 2.30 hs chamou-se o vento para OSO, conservando-se fresco. Aguaceiros das 4 às 8 hs, atmosfera nublada. No entanto o tempo passou a ficar bom. Lat. 52° 17' 8" S; long. 82° 18' 54" O Gw.
7 de março - Às 2 hs começou o tempo a arrepender-se de haver melhorado, e de novo volveu o céu a nublar-se, refrescando o vento. Às 6 já se estava com gáveas nos 4°s e vela de estai do convés, lutando com um NO furioso e mar de vagalhão extraordinário. Às 15 hs arrebentaram-se as escotas da gata, mas apesar da fôrça do vento esta vela foi firmada, com presteza. Às 19, chamando-se o vento para OSO, virou-se em roda, com as escotilhas fechadas e as mais precauções necessárias.
O navio portou-se bem; poucos agüentariam tanto... Lat. 50° 34' 38" S; longo 80° 44' 24" O Gw.
8 de março - Temperatura agradável durante o dia. Tanto se desenvolveu o apetite da marinhagem que, apesar de abundante, não sobejam as rações; justamente o contrário do que acontecia no Atlântico, nas proximidades costa. Lat. 50° 53' 25" S; long. 81° 35' 13" O Gw - sempre calculadas ao meio-dia.
9 de março - Calma, pela manhã. Os barômetros sobem e os termômetros descem, o que faz esperar vento do quadrante SO, se bem que haja neblina tão forte que parece chover. Lat. 50° 15' 54" S; long. 81° 43' 55" O. Gw.
10 de março - Tempo claro até às 14 hs. SO regular e mar chão. Depois, calma. Descem os barômetros, sobem os termômetros e nubla-se a atmosfera. Ás 18 hs.
Cai NO, que às 23 ronda para o quadrante NE. Lat. 48º 32’ 30” S; long. 80° 24' 5" Gw.
11 e 12 de março - Vento forte do quadrante NO. Depois clareia e os ventos rondam para o OSO regular. E como o navio se aproxima dos 40° devia-se supor que não mais seria perseguido pelo NO.
13 de março - Ótimo tempo: SO regular. Os termômetros passam a 30, altura a que não chegaram durante toda a viagem. Içam-se aos turcos os escaleres que iam sôbre o tombadilho. Lat. 42° 59' 2" S; long. 80º 23’ 45” O Gw.
14 de março - SSE regular; bom tempo; proa NNE; barômetros a 30,07. Apesar de a 6° afastado da costa, o navio singra em mar esverdeado, o que não se explica, pois as sondas não encontram fundo, que só muito perto de terra está a 90 braças, nos mapas. O que é certo, porém que só agora se navega em mar pacífico... Lat. 40º23’55" S; long. 79° 51' 56" O Gw.
15 de março - Aproxima-se o navio de terra. O contentamento e certa ansiedade bem se mostram em todos semblantes. Com efeito, já era tempo de trocar as árduas fadigas do mar pelas doces distrações que oferece a hospitalidade de um país amigo. E nenhum lugar mais sensível que Valparaíso à gentileza dos navegantes que dobram o cabo de Horn, para visitá-la; porque realmente essa bela cidade, pródiga em compensações, faz esquecer as injúrias do terrível gigante...
16 de março - Avista-se à 1 h um navio de três mastros puxando para E. Navega-se convenientemente e às 17 hs avista-se terra - os altos de San Antonio - onde se distingue uma pequena casa e três moinhos de vento. Vai-se costeando à distância de 6 milhas, para reconhecimento e, como a atmosfera está clara, avista-se ao longe o Aconcágua. Transposta a ponta Curmilla, vê-se o mastro do telégrafo, a sotavento do qual está o pôrto. Depois o farol. O aspecto da costa, fielmente descrito por Vancouver, contrasta com o que se vê no Brasil. As montanhas são altas, escarpadas, quase sem vegetação. Ao descobrir-se, entanto, o pôrto, torna-se a cena bem mais agradável com a presença da cidade e dos navios ancorados.
17 de março - Às 18 hs, já em frente da cidade vem escalares dos navios de guerra americanos, franceses e inglêses, ancorados no porto, oferecer reboque que se aceita por causa da calma e da proximidade da noite. Ao passar-se pela pôpa da fragata "La Forte", toca sua música, formada no tombadilho, um belo ordinário, e é a nossa Bandeira cortejada pelo Almirante M. de Points e seus oficiais. Além dêsse navio existiam no pôrto mais os seguintes: a "Penélope", Contra-Almirante Pellion, mais um brigue e um vapor francês; a fragata dos Estados Unidos HS. Laurence", Comodoro Bladen Dulany; a fragata "Portland", Rear-Admiral Moresby, e mais duas corvetas inglêsas. As 17 hs fundeou-se em 30 braças de fundo, com 60 de amarra, areia fina.
18 de março - Pela manhã, salva-se à terra e aos oficiais-generais mencionados. O pôrto abrigado desde o NO, pelo S, até E, é espaçoso e livre de baixios. De maio a setembro era, todavia, incômodo, e mesmo perigoso, em razão dos ventos dominantes, do N.
Durante a estadia da "Baiana" em Valparaíso, foi a corveta muito visitada, inclusive pelo nosso e outros representantes consulares, lucrando muito sua oficialidade e marinhagem com as manifestações de que foram alvo e com quanto puderam observar. Cidade edificada na parte inferior de uma montanha que se eleva a 1.400 pés, em 1832 apenas constava de uma rua paralela à praia e pouco distante dela. Desde então recebera consideráveis melhoramentos, e a êsse tempo, com grandes edifícios ornados com luxo e calçamento nas ruas, se estendia do forte Rosário ao bairro de Sora, numa extensão de duas milhas. Seu aspecto, de bordo, e para quem ia da Guanabara, é que não era dos mais interessantes, em virtude da côr parda das casas num fundo vermelho de áridas montanhas, só agradável a quem encarou a feia catadura do cabo Horn. Sua população era de 50.000 habitantes, mas já tinha teatro, boas escolas, igrejas, conventos, etc. Sujeita, como todo o país, a tremores de terra, a "Baiana" teve, a 21 de março, de experimentar os efeitos de um dêsses fenômenos: sentiu-se, a seu bordo, um rumor subterrâneo, percorrendo a amarra do navio um estremecimento que se diria comunicado por fluido elétrico.
A população de todo o Chile ascendia, na época, a 1.500.000 almas. E seu povo era amante do trabalho e respeitava o poder, o que muito concorria para a prosperidade do país. Sua marinha de guerra contava com uma corveta, uma escuna, um brigue-escuna, dois vapores e um transporte, com 433 praças e 33 peças de artilharia. Seu exército compunha-se de 505 praças de artilharia, 1.820 de infantaria, 711 de cavalaria, com um estado-maior de 10 generais, 12 coronéis e 162 oficiais de outros postos, tendo a guarda-nacional 51.697 praças. A renda pública em 1851 havia sido de 4.426.907 pesos e a despesa de 4.712.147. A dívida externa montava a 7.286.000 pesos e a interna a 1.568.976. Exportava o Chile trigo e outros cereais, e grande quantidade de prata e cobre extraídos de suas minas. Já tinha as suas estradas-de-ferro, nas quais consumia seu próprio carvão de pedra. Inferior ao Brasil em recursos, tomava-lhe a dianteira na realização dos mais grandiosos e eficazes melhoramentos materiais - assinalava o depois Barão de Ivinheíma.
Pela costa chilena
Conhecida, como ficou, a primeira singradura de 58 dias desde o pôrto do Rio de Janeiro, no Atlântico, ao de Valparaíso, no Pacífico, com referências pitorescas e os detalhes mais interessantes da longa, trabalhosa, incruenta e heróica travessia; registradas as impressões que aquêle surgidouro podia oferecer, e onde a nossa Bandeira passou desde então a ser estimada pois que nêle se impuseram às melhores simpatias nossos oficiais e marinheiros, que a 24 de março dêsse ano, com a bomba de bordo e espontâneamente, ajudaram a extinguir um incêndio que irrompera em edifício do bairro de San Juan de Dios, o que motivou ao comandante de polícia da cidade, Dom Jovino Nóvoa, uma manifestación de gratitud: e sabidos como foram felizes os 36 dias de estadia da corveta no belo, seguro e amigo pôrto chileno - prossigamos na ressurreição do roteiro que tanto ficaria a ilustrar os fastos da Marinha Nacional.
A 22 de abril, tendo completado mantimentos e aguada, suspendeu a "Baiana" às 5 hs de Valparaíso com destino a Coquimbo, numa viagem que fez em seis dias bonançosos, navegando por mares verdadeiramente pacíficos. Costa montanhosa e árida, detalhes de ocorrências e observações seriam de fastidiosa enumeração, principalmente depois dos que já foram referidos na primeira longa andadura.
O pôrto de Coquimbo, bastante abrigado, oferecia um excelente ancoradouro a que, entretanto, faltava aguada e lenha. Já tinha alfândega, e algumas casas de relativa importância, assim como estabelecimentos com fornos para purificação do cobre. A capital do departamento em que estava êsse pôrto era, porém, La Serena, de ruas largas e retas, sete milhas ao norte, com cêrca de 12.000 almas. Escassez de chuvas. Comércio quase nulo. Um templo magnífico. Conventos. Escolas. Uma linda alameda para recreios públicos.
A 26 dêsse mesmo abril velejou-se para Caldera, sendo encontrada às 23 hs do dito dia uma lancha à matroca, tendo na pôpa a inscrição - "Três amigos". Fundeou-se às 10 hs da manhã de 28 em 10 braças de fundo. Pôrto pequeno, bem abrigado, nada tendo de notável a não ser um trapiche em que podiam descarregar simultâneamente 4 navios, e absoluta falta de água potável, suprida por um destilador de vinte mil garrafas diárias, distribuídas pela população.
Coquimbo, que pouco antes era uma pobre aldeia de pescadores, já contava mil habitantes, com ruas bem alinhadas e edifícios regulares, de madeira, por causa dos terremotos. Sua celebridade estava em aí viver Mr. W. Wheelrigh, súdito inglês que organizou e dirigia urna emprêsa de excelentes vapôres de sua nação para linha daquela costa entre Valparaíso e o Panamá, que edificou o trapiche referido e que estabeleceu um caminho de ferro que se desenvolvia até Copiapó, atravessando o deserto de Atacama, numa ascensão em média de 43 pés por milha. Os oficiais da "Baiana" tiveram trânsito gratuito nos seus carros de vapor e assim, em turmas diferentes, foram todos a Copiapó. As minas de prata e cobre iam aí a cêrca de 400. Copiapó já tinha 24.000 habitantes. Ao tempo em que a "Baiana" esteve em Coquimbo, só o vapor "Quito", que então carregava, conduziu para o Panamá 216.355 marcos de prata, à razão de quase 10 pesos por marco.
A 7 de maio deixou-se Caldera, rumo a Cobija - pôrto único da Bolívia – (antes da Guerra do Pacífico) onde se fundeou a 9, em nove braças. Mesma costa montanhosa e alta, deixando aparecer de vez em quando os picos nevados da cordilheira.
Fizeram-se tôdas as observações náuticas, com as mais eruditas referências científicas, graças às melhores indicações estudadas. No novo surgidouro, muito pequeno e insignificante, encontrou-se apenas um brigue chileno de reduzida tonelagem. E viu-se aí, tão só, com as poucas casas da povoação de 800 habitantes, um depósito de água salobra que era a única de que se servia a sua gente, uma alfândega, um trapiche, e um parapeito de terra com 6 peças e 30 homens de guarnição. Até as frutas e vegetais que aí se comiam eram levados de Valparaíso. . . Pescava-se em balsas feitas de peles de lobos marinhos, cosidas duas a duas, formando grande bóias sempre cheias de ar. Nelas um só homem, com um remo de duas pás, afrontava o mar, sem perigo algum.
A 11 de maio deixou-se Cobija e, com calmas e aragens de NE, seguiu-se para o N, a pequena distância da costa. As mesmas observações náuticas e de tôda espécie de curiosidades, que seria longo e cansativo enumerar. Mas a nova escala que se demanda em Arica, pertencente ao departamento peruano de Tacna (antes da Guerra do Pacífico, hoje é chileno), obriga a atenções especiais com as correntes e os ventos, cuidados êsses que se observam à justa, levando-se uma regeira pela pôpa para se aproar ao SO, indo nela fundear a "Baiana" a 15 de maio, para as facilidades de aguada e dos frescos necessários à sua guarnição.
Arica era uma pequena enseada defendida dos ventos do S, e nela estavam alguns navios mercantes e uma pequena divisão peruana composta de dois vapôres, um brigue e um transporte entre aquêles um carregado de colonos chineses, que ao Peru já não convinham... pela preguiça e péssimos costumes. 3.000 almas havia aí, em casas mal construídas. Bananas, laranjas, ariticuns, etc., como no Brasil. Caminho-de-ferro em projeto.
Às duas horas de 30 de maio suspendeu-se, com vento bonançoso de ONO e, com as mesmas constantes observações e cautelas, chegou-se a Callao onde, após fundear, salva-se à terra e à insígnia do Almirante francês arvorada na fragata "Penélope". Aí estão cêrca de 50 navios mercantes, quase todos franceses, inglêses e americanos. Também se passa a ver, pela primeira vez, a Bandeira do Brasil! Callao tinha 10.000 almas e era defendida por um castelo com 10 canhões, possuindo a alfândega mais rendosa do Peru. A 7 milhas de Lima, já se comunicava com a capital por um caminho-de-ferro, em 20 minutos.
Lima, a 72 varas acima do nível do mar, era a êsse tempo murada, com 5 portas que, segundo as tradições populares seriam de prata maciça. Sua catedral, começada em 1535 por Pizarro e concluída 90 anos depois, havia sido destruída pelo terremoto de 1746, mas foi completamente reedificada em 12 anos. Edifício majestoso, tanto externo como internamente, por um dispositivo lateral seu altar-mor, à nave central das cinco, se poderia descer para um salão subterrâneo em que havia catacumbas. Numa delas, aberta, via-se um esqueleto que se afirmava ser o de Francisco Pizarro. Todos os mais templos de Lima igualmente importantes. O palácio do presidente, antigo solar dos vice-reis, grande, porém de exterior feio e sem arquitetura. A sua Rua dos Mercadores era a mais bela e importante, e por isso foi logo apelidada pelos nossos de Rua do Ouvidor. Havia em Lima um teatro, com uma companhia dramática e outra lírica; e alameda em que se reunia o povo para as diversões de corridas de touros. Uma biblioteca de 30.000 volumes, em boa ordem, mas sempre deserta de leitores. Universidade com Escola Militar, de Direito, de Medicina, e de Desenho. Um Seminário Arquiepiscopal. Museu, pobre, recente criação. Colégio secundário e muitas escolas.
Ainda: Mercado, Hospital de Caridade, Asilo de Alienados, Casa de Expostos - mas tudo isto em condições precárias.
População de 140.000 almas. O Ministro Plenipotenciário do Brasil, Sr. Cavalcanti, a 15 de junho ofereceu um baile ao comandante e oficiais da "Baiana", no qual as limenhas se revelaram de uma enlevadora beleza, tôdas trajando à francesa com admirável bom-gôsto. As filhas do representante brasileiro muito impressionaram pelo primor da educação, o que bastante lisonjeou o amor-próprio nacional dos homenageados, por lhes parecerem as figuras de mais méritos da festa.
Sendo necessárias ao govêrno imperial informações sobre tudo quanto dissesse respeito à parte confinante do Peru com o Império, foi ao Comte. Barroso reclamado pelo Cavalcanti um oficial para empreender a interessante viagem, desde ali, pelo Âmazonas, recaindo a nomeação no Tenente Francisco Pereira Dutra, que, além de ser o mais habilitado para semelhante comissão, apresentou-se voluntàriamente e para sujeitar-se, ainda, a tôdas as onerosas condições que as circunstâncias impunham.
Rumo ao Equador
Às 17 hs de 15 de julho suspendeu-se, rumo N. As mesmas tomadas de altura de cada meio-dia; as mesmas observações minudentes e variadas; os mesmos registros inapreciáveis - dando-se fundo em Paita às 12 hs de 17, em 10 braças d'água. Pôrto magnífico, inteiramente livre de perigos, é o único da província peruana de Piura.
Essa escala, todavia, era breve, e assim às 22 hs de 18 junho largou-se para Guaiaquil, com prático, por se prever a navegação mais difícil e penosa, entre tôdas, da alongada viagem, pois era mister subir o trecho do rio, a ilha de Puna até a cidade, com cêrca de meia milha de extensão, parte velha e parte nova, reunidas por uma pequeníssima ponte. As casas, quase tôdas de um só pavimento, muito grandes e espaçosas, eram aí construídas de madeiras e tabocas revestidas de uma espécie de argamassa em cuja composição entrava o escremento de boi.
Tinha ao tempo, o Equador, 750.000 almas, inclusive os escravos, e era governado pelo Presidente Urbina, só possuindo então duas escolas públicas, uma aí e outra em Quito. Sua fôrça militar se compunha de 800 soldados de infantaria, 100 de artilharia e 300 de cavalaria; de dois maus vapôres, desarmados e de duas pequenas escunas - fôrça essa sustentada com enorme sacrifício dos cofres públicos.
Dias antes da partida da "Baiana" apareceu no pôrto um vapor conduzindo o Chefe da Nação; que temporàriamente deixava seu palácio em Quito para passar dias em Guaiaquil. Salvou-se-lhe com os 21 tiros da pragmática e com os 5 vivas da marinhagem nas vêrgas, mandando-se-lhe escaler com oficial às ordens. S.
Excia. teve a delicadeza de desembarcar nesse escaler e sua senhora foi até sua casa pelo braço do 2.º Tenente Paula Martins. No dia seguinte o comandante e oficiais tiveram a honra de visitar o Presidente Urbina, que em retribuição lhes ofereceu um jantar no dia 5, em uma chácara da ilha Santary, para onde todos seguiram em vapor especial.
Esse dia 5 de agôsto era o marcado para a saída, que assim se adiou para 6 quando, às 11 hs, vazando a maré, deu a "Baiana" princípio à sua volta para Valparaíso, "bordejando sem pano e com o ferro no fundo, sempre com a pôpa para diante. Ninguém ignora que o gráu de resistência que opõe uma âncora a ser arrastada pelo navio está na razão diréta de sua distância a êsse navio. Sabe-se igualmente que qualquer embarcação entregue absolutamente aos esforços da velocidade da correnteza, segue inteiramente à sua discrição, por não ser possível dar ação ao leme. Tendo em vista tais princípios recolhe-se tanta amarra quanta seja necessária para que o navio garre, com velocidade menor que a da correnteza. Esta circunstância, dando-se ação ao leme, faz com que o navio tenha movimento retrógrado no sentido resultante dos esforços do leme e da correnteza. Assim saiu a "Baiana", evitando com facilidade não só os navios que estavam fundeados como o pouco fundo de certas paragens. Em lugares em que o rio era mais largo velejou-se, e com a gâvea-sôbre, numa e noutra amura, conseguiu-se transpor o gôlfo de Guaiaquil". Às 9 hs marcou-se para ponto de partida a ilha Clara, e com os ventos gerais que sopravam de SE foi-se a 95º longitude e 33º de lat. S, passando-se ao norte das ilhas de Juan Fernández na distância de três milhas, indo-se fundear em Valparaíso no dia 30 às 20 hs, com excelente cruzeiro de 24 dias.
Ainda não haviam chegado os navios de guerra estrangeiros, que se haviam ausentado durante o inverno, ficando a "Baiana", assim, único no pôrto, além dos da marinha chilena.
No dia 7 de setembro embandeirou-se em arco e deram-se as salvas do cerimonial, sendo essas demonstrações de regozijo pela passagem do 30º aniversário de nossa independência, acompanhadas pela Marinha Chilena, que por sua vez festejou idêntico acontecimento da nação irmã a 17, 18 e 19, com a solidariedade da nossa corveta.
No dia 15 de outubro, pelas 15h45 e após as despedidas de cortesia, fêz-se a "Baiana" de vela com destino a Montevidéu, onde chegou com 30 dias de bom tempo, de ventos favoráveis e algumas calmas, depois da bordada inicial até o E das ilhas de Juan Fernández que lhe permitiu puxar para o S.
No dia 23, quase E - O com o estreito de Magalhães, sendo necessário ferrar a bujarrona que se tinha rasgado, caíram ao mar os dois homens que saíram para essa faina, e que desapareceram imediatamente não só por estarem muito enroupados como por ser baixa a temperatura do oceano. Atirou-se-lhes a bóia de salvação, fêz-se o que pôde para socorrê-Ios. Mas ficou o pesar de nada conseguir-se, também não se apanhando a bóia por estar o vento forte e o mar de vagalhões.
Os dias estavam sendo de 17 hs e as noites muito claras . De 29 a 30 esteve-se na lat. 53°30'S. Fez-se, a seguir, fôrça de vela caminhando-se com velocidade de 11 milhas em demanda do cabo de Horn, que se viu às 3 hs de 1º de novembro no rumo NO magnético, e depois às ilhas Benevelt. Passou-se, mais tarde, a E das Malvinas, e entrou-se em Montevidéu a 15 de novembro.
Da capital do Uruguai, onde posteriormente o Chefe Barroso iria constituir família e terminar seus dias, a "Baiana" largou às 7 hs de 5 de dezembro para o Rio de Janeiro, onde amarraria às 5 hs de 15, após quase um ano de ausência.
Esse, pois, o primeiro grande e memorável cruzeiro da Marinha Brasileira ao Pacífico, todo dedicado ao aprimoramento técnico de seus oficiais, e a mais completa e melhor instrução de sua marinhagem. Outros já haviam empreendido. Muito mais levou a têrmo, como continuará a realizar, sob novas, sucessivas e diferentes modalidades, consoante os progressos de seu aparelhamento.
Mas êsse; entre os vários outros mais notáveis, nunca se apagará dos registros de nossa História Naval, pelo que de autêntico lustre, e de legítima honra, e glória imarcesível lhe legou no mais justificado motivo de orgulho para o nosso próprio querido Brasil !
Bibliografia:
Revista Yachting Brasileiro – 1944
Nossa Marinha – Seus Feitos e Glórias (1822-1940)
Almirante Trajano Augusto Carvallho