Convivendo em navegação de cruzeiro

Confinamento não é para todos

Por Danilo Chagas Ribeiro

Em outubro de 2004 velejei com um tripulante muito experiente. Foram 4 dias embarcados no Delta36 Canibal, em convívio muito harmonioso com o Cmte Andreas Bernauer e o Cmte Geraldo Knippling. Ex-comandante da VARIG, o Cmte Knippling foi condecorado por serviços prestados em momento muito difícil. Escreveu livros sobre o Rio Guaíba e a Lagoa dos Patos, e é o grande conhecedor da região. Seguidamente desatraca o Magana do Veleiros do Sul, para velejar com Dona Regina, sua esposa. Aos 82 anos, tem disposição, agilidade e memória incríveis. Apesar da grande experiência em navegação e na região, o que mais chama a atenção no Comandante Knippling a bordo é sua postura como tripulante. É exemplar. Certamente suas 40.000h de vôo tem muito a ver com seu jeito a bordo.

Navegar também representa confinamento e convívio intenso. É muito importante saber comportar-se a bordo de forma a tornar a navegada agradável a toda a tripulação, principalmente em navegação de cruzeiro, onde se pode passar embarcado por alguns dias seguidos. É diferente de participar de uma regata ou de um passeio de um dia apenas, sem pernoite a bordo.

Tenho tido muita sorte nas tripulações em que tenho participado, mas o que se ouve por aí sobre convívio a bordo é surpreendente. Imagine um comandante convocar seus tripulantes a rezar com ele ao final de cada dia, ou um cozinheiro que enche a comida de alho e pimenta como se todos gostassem? Que tal ouvir jogo de futebol pelo rádio, a bordo? E se um tripulante usa desodorante spray catinguento?

Tem o tripulante que já embarca praguejando e, tenso, cria um clima de desatino a bordo. E tem o negativo que só fala em problemas e dramas. Ou o que só conta vantagem do que comprou e do que vai vender. E ainda tem aquele que procura abordar assuntos polêmicos o tempo todo, como política.

Vários são os barcos que não desatracam por falta de tripulação. Além do conhecimento da faina a bordo, espera-se um nível de convívio muito bom. Nesta semana um amigo que vendeu um trawler há pouco tempo me dizia que cansou de "correr atrás de homem em trapiche". Quando queremos fazer um cruzeiro, convidamos os amigos. Não é raro ouvir-se que um não pode porque tem um aniversário na família, o outro está com problema de saúde em casa, e assim por diante. Nestes casos os passeios podem ser adiados por falta de tripulação. No final de semana seguinte poderá haver mau tempo. Quinze dias depois, é possível que a gente mesmo já não possa sair.

Quem embarca precisa renunciar aos afazeres do dia-a-dia e deixar os problemas para a volta.

Existe muita gente querendo embarcar, é verdade, mas conhecem a faina? Podem sair neste final de semana? Vão se dar bem com os demais tripulantes convidados?...
Seguidamente as tripulações são compostas por comandantes, exclusivamente, em que cada um tem seu barco e navegam no barco de um deles para terem tripulação conhecida e confiável.

As esposas que não acompanham os maridos são torcida contra, logicamente. Não é raro ver-se um ou mais casais em um mesmo barco em navegação de cruzeiro, inclusive com crianças a bordo. Mas, via de regra, as esposas não acompanham os maridos. Já as namoradas sempre vão junto! Depois que casam, não sei o que acontece... Sei de alguns navegadores cujas esposas sequer conhecem os barcos, nem querem conhecer. Creio que a maioria delas não precisa tanto e até tem aversão à adrenalina tão valorizada pelos homens nas velejadas. Mas é sensacional ver as poucas esposas proeiras ou timoneiras fazendo a faina com perfeição.

Dois, três ou até quatro é um número bom para se conviver em barco para 5 ou 7 tripulantes, quando em cruzeiro. Durante uma navegada podem rolar altos papos a bordo. Confidências e cumplicidade têm muito a ver com confinamento de amigos e bebida. A navegação de recreio tem um apelo lúdico enorme, e a navegação de cruzeiro é uma atividade essencialmente lúdica, em que o esporte fica em segundo plano. E quando a tripulação está afinada e alegre, um cruzeiro pode deixar o queixo dolorido, de tanto a gente rir.

Um comandante alemão que conheci é fiel a Baco uma barbaridade, mas as travessias oceânicas lhe fizeram acreditar que só deve abrir o bar se estiverem atracados a um trapiche. Se não, não tem conversa. Em fundeio, nem pensar em trago!
Bebida em garrafa? Só vinho e whisky. Quem sabe um bom run. O resto, em lata, por representar menos risco e menos volume de lixo. Bêbado a bordo pode ser muito ruim. Já pensou em um tripulante bêbado se jogando na água? Acontece...

Tem o tripulante que embarca com uma enorme mala para 2 dias de navegada. E tem o comandante que não passa o leme nunca pra tripulação. Tem ainda o comandante meticuloso, detalhista e exigente, que chateia. Será que o comandante avisou o marinheiro de primeira viagem para não vir com aqueles tênis de sola preta que vai deixar o rastro pelo convés? O constrangimento do novato é muito pior do que o convés sujo. As pessoas só se dão conta da sola quando caminham sobre o gel branco.

E tem o tripulante alegre, de atitude positiva, disposto, pró-ativo, com idéias e ações favoráveis à tripulação e à navegada. É muito bem-vindo o tripulante que antecipa as necessidades de faina e já vai providenciando sem que o comandante peça, como o que já tem prontas as coordenadas que o comandante vai solicitar em seguida. Ou como o proeiro que, prevendo um novo rumo com vento em popa, já vai preparar o balão e o pau de spi.

Claro que as conveniências e dificuldades de convívio ocorrem também nas famílias, nas empresas, e em qualquer grupo social. As pessoas a bordo têm as virtudes e defeitos das que convivem conosco em terra. São as mesmas pessoas de terra, enfim. Confinados em convívio de 24 horas por alguns dias, aquela máxima de saber aceitar os outros como são, precisa ser enfatizada. E esta talvez seja uma das fainas mais difíceis de aprender na navegação de cruzeiro.

"Quando tudo falhar, tente fazer o que o comandante sugeriu" (placa a bordo do veleiro Charlie Bravo V)

Extraído de crônica publicada originalmente no Popa.com.br, em Nov/2004.