Amyr Klink: "Porto Alegre não tem nada de porto"

Fonte: Zero Hora (leia aqui a entrevista completa)

Porto Alegre é um exemplo da falta de atenção que o Brasil dá aos recursos hídricos?
Porto é patrimônio da comunidade, está no nome da cidade. A cidade foi um porto inteiro, sua natureza, sua origem era de porto. E não tem nada de porto. O porto-alegrense não tem direito a ter um barco dentro da cidade. Como é que entra no porto? Tem um muro!

Fazem um projeto ridículo, como o Estação das Docas [iniciativa de revitalização da região portuária de Belém, no Pará], voltado para o rio, e cadê os paradouros? Cadê as 2 mil embarcações que tinham de ficar paradas ali, que é o grande potencial da cidade? Duas mil embarcações geram, por ano, talvez R$ 200 milhões. A gente faz tudo torto.

O transporte público tinha de usar essas malhas naturais navegáveis e não usa. A cidade se esgoela de fazer avenida, aterro. O Brasil tem uma ignorância em relação ao mar que é assustadora. A Baixada Santista, maior malha navegável da América Latina, foi simplesmente destruída por governos ignorantes. Nenhum governador questionou que se estava destruindo um patrimônio que, na Europa, é conservado a unhas e dentes.

Eu estava nos EUA essa semana, estudando a Intracoastal Waterway. Você faz a costa leste dos EUA de Key West, na Flórida, até o Canadá, por uma via navegável interior, sem ir para o mar aberto. Essa via tem mais de 50 mil km de canais navegáveis totalmente estruturados, com milhares de atracadores. Não tem instrução ambiental, nada. É um canal "natural artificial", porque houve conexões construídas entre os canais naturais. É maior do que o grande canal da China, que é uma das maiores obras hidroviárias do mundo.

Não gosto dos modelos americanos de arquitetura e urbanismo, mas lá ao menos existe padronização, regras coerentes. Uma cidade horrível como Miami tem detalhes eficientes: as larguras de calçadas, meio-fio e sarjeta são rigorosamente iguais. Tudo é pensado para a mobilidade. A verticalização é controlada. No Brasil, você pode montar um shopping sem estacionamento!

Em Porto Alegre, houve grande resistência ao Pontal do Estaleiro, projeto propagandeado como reintegração ao Guaíba. Em Recife, isso de construir hotéis com marinas é bastante forte...
São coisas separadas. Hotel é hotel, condomínio é condomínio, marina é marina. Infelizmente no Brasil o assunto da mobilidade náutica sempre foi visto como um adendo de um negócio que brasileiro sabe fazer bem, que é ganhar dinheiro fazendo predinho. Todas as marinas feitas no Brasil até hoje, sem exceção, foram projetos muito mal-feitos de arquitetos que não entendem de uso náutico.

É diferente dos EUA. Os Rockefellers são ruins para fazer casa, mas usam barco dia e noite. Vão para Nova York por dentro. Lá, as marinas são uma necessidade das comunidades, aumentam a riqueza das comunidades.

São Paulo é circundada por três rios e só os usa para jogar esgoto. É um absurdo. A gente faz barcos grandes, e o certo seria colocar o barco no Tietê, passar para o Pinheiros e sair pela Imigrantes para a Baixada Santista, sem ter de cortar 1,2 mil cabos elétricos. Mas o poder público quer que a gente tire a licença e corte os 1,2 mil cabos elétricos, derrube os 200 semáforos. E o rio está lá. O único vão amplo era o rio. Era só usar o rio.

E o que falta para fazermos as pazes com o mar?
Uma mudança cultural. Primeiro, tornar o mar acessível, criar marinas públicas, valorizar o uso da água. A incongruência mais crônica na América do Sul é Florianópolis. Quando você explica a cidade para um francês, um americano, um russo, eles não acreditam. A cidade aterrou e destruiu todos os seus atracadouros e acessos públicos, de maneira que ninguém tivesse acesso ao mar. Criou um centro de convenções sobre esse aterro, na beira da água e de costas para o mar, onde eles colocam o lixo, os botijões de gás e os trocadores de calor dos aparelhos de ar condicionado. Fizeram a ponte Hercílio Luz abaixo da altura necessária para passar um veleiro ou um navio. A cidade cortou a hipótese de ser uma ilha navegável. Pior ainda: enquanto a ponte teria de ser implodida, ela foi tombada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). E construíram uma outra ponte, mais baixa ainda. É muito pavor do mar!

Aí você vê São José, Palhoça, Biguaçu... Há cinco municípios de extraordinária atividade econômica que estão se esgoelando no trânsito todos os dias. Tinha de ter 30 terminais no mar para fazer transporte das pessoas pela água em 15, 20 minutos. Você analisa o deslocamento da população de ônibus na Grande Recife: é todo paralelo ao rio. Mas não dá para usar o rio, porque fizeram as pontes um metro acima da água.

Somos um país extraordinariamente rico. Nossas comunidades são mais ricas que as americanas. Mas temos um grau de intervenção do Estado espetacular. Uma comunidade americana recolhe 7%, 8% de tributos. Uma comunidade brasileira, mesmo de baixa renda, como uma favela, recolhe 45% de tributos a um Estado incompetente para prover mobilidade, saúde e educação.

Foi muito interessante esse concurso público da base brasileira, embora eu condene fazer a base no mesmo lugar. Acho que o Brasil devia fazer uma base na Antártica. Está aí o Jefferson Simões (pesquisador da Geologia da UFRGS) fazendo vários projetos, conseguidos graças ao empenho pessoal dele. Na Antártica, você acaba pensando em todas as questões de uma comunidade: planejamento, hidráulica, política, gestão, desperdício. Nesse sentido, o edital é fantástico, contempla todos os problemas que todos os gestores de cidades no Brasil deviam ter lido pelo menos uma vez. Dou um dedo se um dos 5 mil prefeitos brasileiros tenha lido isso.