Memória Minuano: Uma velejada pelo Mediterrâneo

Seguimos com a série Memória Minuano, que relembra fatos históricos e matérias publicadas na revista O Minuano, do Veleiros do Sul.

Na história de hoje, resgatada da edição número 97, de dezembro de 1998, Augusto Chagas conta sobre uma antiga velejada pelo Mediterrâneo, repleta de peripécias e aventuras náuticas. 

Confira o relato completo: 

“Vou contar aqui uma grande velejada acontecida no Mediterrâneo. O ponto de partida foi Cesárea em Israel, 27 milhas ao norte de Tel Aviv. A âncora foi içada e começaram a velejar pela costa rumo ao norte. No dia seguinte chegaram a um abrigo, na cidade de Sidon, velejando neste dia mais ou menos 70 milhas. Em Sidon foram à terra visitar amigos e se abastecer das coisas que estavam faltando. Quando saíram desse abrigo necessitaram navegar entre a ilha de Chipre e a costa da Turquia porque o vento começou a soprar bem do rumo que eles queriam ir. Sempre costeando a Turquia chegaram à cidade de Myra, onde resolveram trocar de barco. Tinham se dado conta que precisam de um barco maior para continuar a viagem.

Saindo de Myra navegaram no contravento por muitos dias, lentamente, porque o barco não era bom de bordejo. Num desses bordos chegaram até a avistar a cidade de Gnido, ainda na Turquia. Passaram entre a ilha de Rhodes e a de Karpathos pertencentes a Grécia e, aproveitando un mudança do vento, rumaram para o sul de Creta, se deliciando com o bom tempo e as costas maravilhosas. Navegando com dificuldade, bem junto à costa de Creta, chegaram a um lugar conhecido por uns pelo nome de Bons Portos e por outros de Fair Havens. Este abrigo ficava perto da antiga cidade de Thalassa.

A essas alturas da viagem o tempo tinha começado a mudar por estar se aproximando o inverno, de modo que resolveram ir mais para o ocidente de Creta, tentando chegar em um outro abrigo que fosse protegido tanto dos ventos do sul como do oeste.

Quando começaram a velejar entrou um ventinho puxador, do sul, que era o que eles queriam para continuar a costear Creta. Nem bem tinham contornado o cabo Matala, velejando numa boa, quando o sul se foi e então entrou o temido vento Euroclidon. 

A força do vento era tanta que o barco ficou sem controle, com a tripulação fazendo de tudo para não irem ao fundo. Chegaram a passar três dias sem ver nem sol nem estrelas. Só viram alguma coisa quando passaram perto de uma pequena ilha mas o medo maior era serem levados para a costa da África onde certamente perderiam o barco. Navegavam em árvore seca, pois chegaram até a deitar pela borda parte do aparelho, principalmente porquê parecia que o tempo ainda ia piorar. Em um determinado momento chegaram até a perder as esperanças de se salvar. 

Perto da meia noite do décimo quarto dia, o pessoal da tripulação começou a achar que estavam chegando perto de terra e começaram a sondar. Encontraram 20 braças e, um pouco mais adiante, 15 braças. Como medida de precaução, com medo de estarem se aproximando de alguma costa perigosa, lançaram da popa quatro âncoras para esperar o amanhecer.

A esta altura a tripulação resolveu pôr n'água o escaler com a desculpa de largarem as âncoras de proa, mas o que queriam era desertar do barco. Descoberto o motim o capitão, para não deixar dúvidas, mandou cortar as amarras do escaler para que ele fosse à matroca. Sabiam que se os marinheiros não ficassem no barco não haveria chance de salvamento para todos.

Quando a situação melhorou um pouco, depois de terem visto que as âncoras tinham cunhado bem, todos foram aconselhados a bem se alimentar porque seria preciso um aliviar o barco da maior quantidade possível de carga. Quando clareou o dia estavam em uma pequena enseada, desconhecida, com uma praia na qual talvez pudessem encalhar o barco.

Levantaram as âncoras, içaram a vela de proa e deixaram o barco ser levado em direção à tal praia. A manobra não deu certo e eles foram parar em uma ponta de areia onde o mar batia de ambos os lados. Acabaram encalhando pela proa ficando a mesma firme em terra. Então a popa começou a se abrir com a força do mar. Todos conseguiram abandonar o barco sem perda de vida alguma, pois os que não sabiam nadar se valeram de tábuas e de destroços para chegarem à terra.

Aventura 

Haviam chegado à ilha de Malta, onde os habitantes os ajudaram com abrigos e fizeram uma grande fogueira para protege-los do frio. De Creta a Malta, em linha reta são 506 milhas. Ficaram em Malta por três meses, saindo de lá em outro barco que levava o emblema de Castor e Polux. Dali arribaram para Siracusa, na Sicília onde ficaram três dias. De lá, correndo a costa, foram até Régio di Calábria em um dia. Saindo de Régio di Calábria com um bom vento sul, chegaram em dois dias em Pozzuoli. De Régio a Pozzuoli são mais ou menos 180 milhas resultado uma singradura de 90 milhas nos dois últimos dias. Havia 276 pessoas a bordo.

Esta viagem pode parecer um pouco estranha. Muitos nomes não coincidem com os que a gente encontra nas cartas disponíveis. O fato é que se trata de uma velejada acontecida no ano 62 da Era Cristã, na qual o Apóstolo Paulo estava sendo levado preso para Roma pois havia recorrido a Cezar para se defender de uma acusação. Quem quiser mais detalhes desta "aventura" procure na Bíblia de bordo no Novo Testamento, em ATOS, сaptulos XXVII e XXVIII. Descobri esta passagem quando procurava uma outra citação indicada em um artigo da revista Cruising World. Gostei muitos desses capítulos, primeiro pelas peripécias náuticas e depois pela precisão da localização nas cartas. Este relato é de uma viagem ocorrida há 1936 anos mas é impressionante como parece um fato atual.”

*Texto de Augusto Chagas, publicado na 97ª Revista O Minuano, de dezembro de 1998.