Memória Minuano: Como surgiu o protesto no iatismo

A série Memória Minuano de hoje relembra o texto de 1945 sobre o surgimento do protesto no iatismo. Com pesquisa de Nelson Ilha, a matéria foi originalmente publicada na revista Yachting Brasileiro e recordada na edição número 104 da Revista Minuano, de 2005. 

"Não, não quero protestar, é tão desagradável...", diz o tímido que sofreu um golpe do adversário mais agressivo durante a regata renhida. "Por que protestar? Não vale a pena e mais ainda contra o João; é tão simpático..." reflete outro timoneiro num gesto generoso. Um como outro está errado. O raciocínio dos dois baseia-se na concepção irrefletida, vaga e "desvairante” da palavra: protesto. Este verbo é ligado, instintivamente, a algo deselegante ou inamistoso, sim mesmo desafiante, um ato provocador. Nada mais errado que isto.

Desde os tempos mais remotos o homem do mar criou e observou certos costumes nas manobras dos seus barcos. O desenvolvimento da navegação transformou a tradição em lei, uma lei que nós conhecemos pela denominação "Direito ao caminho". Os costumes marítimos não desviam neste respeito à norma do progresso da humanidade; esta norma de fixar os preceitos principais da vida quotidiana num código de comportamento cívico.

O esporte da vela, o yachting, formando as regras dos seus movimentos, os diretivos das suas composições, recorreu ao "Direito ao caminho”. Era natural, porque os seus organizadores primitivos eram os mesmos homens práticos cuja concorrência profissional constituía em corridas, corridas pelo pão diário. Eram eles pilotos em busca do navio à vela manobrando em demanda do porto mais próximo, eram eles pescadores perseguindo sua caça, que organizaram nos dias de folga as primeiras regatas esportivas. Regatas não somente medindo o valor das tripulações, mas também o valor dos tipos dos seus barcos. E assim eles levavam consigo um aparelho de arbitragem que hoje ainda -, com pequenas exceções, tributos ao momento esportivo - é a mesma…

Inglês é o verbo dos navegadores, é a língua ouvida e compreendida nos sete mares. Uma liga de anglo-saxão e celta, latim e nórdico, sua origem é das mais diversas, mas o cunho das suas palavras é dado pelo homem que vive nas Ilhas Britânicas. E assim é que o sentido atual da palavra pode divergir do original, absorvendo e refletindo durante os tempos todos os matizes da vida quotidiana. E isto provocou a afirmação lírica de John Galsworthy numa oração bela à língua da sua terra: "Eu creio (acredito) na vitalidade, na variedade, na força sutil nas melodias sutis da nossa rica e antiga língua”.

Protesto... é uma destas palavras submetidas à influência das marés das épocas. De origem latina, os nossos antepassados nas beiras do Mediterrâneo aproveitaram-se do verbo para protestar sua estima e consideração; eram assim gestos cavalheirescos. O espírito guerreiro do homem moderno é que investiu à palavra a veemência. Na língua inglesa antiga protestar era sinônimo com afirmar. Esta era também a concepção dos lobos do mar, uma concepção conservada até nossos dias. Nos termos marítimo-jurídicos o comandante files a protest - forma um protesto. Seja o fato de relatar que a tempestade quebrou a borda falsa ou que um tripulante foi levado pela vaga; ou que havia uma colisão fatal; a expressão é a mesma: To filé a protest. Um simples relatório do acontecimento. À corte marítima é a que compete julgar a inocência ou culpabilidade e a responder do caso. O comandante simplesmente: files a protest.

O espírito do "protesto" esportivo não discorda das "afirmações" exigidas pela tradicional justiça marítima. Nem considerações de cavalheirismo, nem de simpatia, absolvem o yachtsman que esconde seu protesto. Menos ainda é absolvido aquele que “não acha que vale a pena” ou o outro que faz um rápido cálculo dos pontos antes de resolver apresentar - ou não seu protesto. Nem é absolvido o "corretíssimo" que se retira voluntariamente da regata, porque "pensa" que cometeu um erro.

A entrega do “protesto", do relatório, dos acontecimentos violando as regras ou que se supõe infringi-las - constitui um ato de justiça. No esporte da vela não há "juiz de campo", cada timoneiro é seu juiz. Em troca desta confiança e em conservação deste alto nível do nosso esporte é um dever de relatar a ocorrência anormal, aliás, em "afirmação" que pode ser perfeitamente "com os devidos protestos de estima e consideração ao respeitoso concorrente”.

Porque assim é que exige o espírito do mar...

Por Biarnar 

*Texto publicado na revista Yachting Brasileiro de 1945 na coluna Espírito do Mar. Pesquisa de Nelson Ilha.