Memória Minuano: A primeira Regata de Longo Curso

Seguimos com a série Memória Minuano, que relembra fatos históricos e matérias publicadas na revista O Minuano, do Veleiros do Sul. Na história de hoje, voltamos para 2006 com o relato de Geraldo Knippling, comandante que fez história na navegação gaúcha, sobre a primeira regata de longo curso. 

Confira:

“Em meados do século XIX já era praticado o esporte da vela de forma competitiva. Havia regatas, porém restritas ao longo da costa ou então em lagos e lagoas. O principal empecilho para uma regata de longo curso, cruzando um oceano, era a falta de comunicação entre os continentes. Não havia possibilidade de contato entre a largada e o destino, muito menos com os barcos. Já havia o telégrafo (com fio) nas áreas continentais. Entre a Europa e a América, um grande vazio. Previsões de tempo eram inexistentes. As notícias eram trazidas pelos navios a vela que cruzavam o oceano ou então pelos primeiros navios a vapor ainda em evolução. Evidentemente a desatualização do noticiário era enorme; algo inconcebível e difícil de imaginar nos dias de hoje.

Isto começou a mudar quando entrou em serviço o primeiro cabo telegráfico submarino entre a Europa e os Estados Unidos em 1866. Entretanto as comunicações marítimas por telégrafo sem fio só começaram a ser bem sucedidas no início do século XX. Estas condições desestimulavam o interesse público por qualquer regata, já que não era possível acompanhar a competição e somente saber do resultado semanas após o fato.

Os proprietários de barcos oceânicos de regata eram poucos e muito ricos. Não eram velejadores no sentido próprio da palavra. Eram os donos, mas não os comandantes. Contratavam tripulações profissionais para operar suas embarcações.

Em novembro de 1866, jantavam 4 jovens milionários no exclusivo Union Club de Nova Iorque. Todos eles proprietários de barcos de regata. Eram James Bennett Júnior, futuro dono do jornal New York Herald, proprietário de escuna "Henrietta" de 110', o herdeiro da indústria de tabaco Pierre Lorillard e sua escuna “Vesta” de 107' e os irmãos Franklin e George Osgood de uma família de banqueiros com o racer “Fleetwing" de 106'. Para eles, não havia falta de recursos. O “pobre" James Bennet tinha uma mesada de 11 milhões de dólares. No seu 16° aniversário ganhara do pai uma escuna de 72' completa, com tripulação de 22 pessoas, entre comandante e marinheiros.

Estes senhores argumentavam sobre as vantagens e a invencibilidade dos seus barcos. Acabaram desafiando-se para uma regata transoceânica, inédita, dos Estados Unidos à Inglaterra; de fato o primeiro Transatlantic Challenge. A aposta, entre eles, era em dinheiro vivo e chegou ao valor individual de US$ 30.000 na época, hoje, o equivalente a um milhão de dólares, depositados no caixa do NYYC, para serem entregues ao vencedor. 

Começou logo a procura por tripulações qualificadas. Bennet, o "pobre” menino rico, conseguiu contratar, a peso de ouro, um famoso comandante de navios de linha, chamado Samuel Samuels, acostumado a cruzar o Atlântico Norte em qualquer época do ano e conhecido por seu rigor e por sua audácia. A quantia acordada foi de 10.000 dólares (350.000 em valores atuais), pagos antecipadamente. Também havia em Nova Iorque uma bolsa de apostas aberta ao público, que atingiu valores jamais obtidos, resultando na mais alta aposta esportiva do século. Logo que recebeu o dinheiro, Samuels foi apostar na sua própria vitória 3/ 4 do valor recebido. A maior dificuldade para Samuels foi encontrar marinheiros experientes, que se recusaram a tripular estes tipos de barcos, considerados frágeis, com pano exagerado e um convés desprotegido, ainda mais quando o comandante era Samuels. Os outros concorrentes também contrataram tripulações profissionais.

Incrível e irresponsável foi a data da largada, em pleno inverno, marcada para o dia 11 de dezembro de 1866, blow high or blow low: com qualquer tempo. Para os irmãos Osgood e para Lorillard ("Fleetwing" e "Vesta") isto não fazia diferença, pois ficariam em terra, nos seus confortáveis e aquecidos escritórios, aguardando a notícia da vitória pelo telégrafo. Somente Bennet resolveu acompanhar a navegada a bordo da sua "Henrietta", sob o comando de Samuels.

Como era de esperar, no dia 11 de dezembro o tempo não era nada adequado para os 3 barcos participantes da regata: temperatura de 3°C abaixo de zero e vento de 30 KTS do setor W. "Henrietta" e “Fleetwing" seguiram inicialmente para o norte, a rota mais curta e também a mais perigosa devido aos ventos extremos e à constante e ameaçadora presença de icebergs. O frio intenso, a má visibilidade e o convés sempre varrido pelas ondas mantinham a tripulação no limiar da exaustão. Sem possibilidade de pedir auxílio ou mandar qualquer notícia, estavam completamente sozinhos relegados à sua própria sorte. "Vesta" preferiu um rumo mais para o sul, na rota dos navios mercantes. Samuels, que tinha experiência nessa rota gelada, dizia que tinha um pacto com o diabo e decidiu manter todo o pano. Não dava folga à tripulação, que mantinha ativa o tempo todo. Durante uma semana navegaram por tempestades e nevascas, sem conseguir obter posições confiáveis pela então “moderna” navegação astronômica. A frágil escuna rangia por todos os lados. Samuels, amarrado junto à roda do leme sofismava: à noite é que são feitas as travessias mais rápidas… à noite é a hora de desafiar os nervos… o jovem proprietário Bennet raramente estava no convés, mas achou por bem sugerir que o pano fosse reduzido, com receio de quebrar o mastro. Samuels não concordou e retrucou: ...nós queremos velejar com seriedade, Sr. Bennet. 

No dia 18 de dezembro o vento aumentou para 64 KTS. Samuels mandou recolher a vela grande. Havia dois timoneiros amarrados junto à roda do leme para conseguir manter precariamente o rumo. “Henrietta" agüentou por 4 horas, quando uma onda gigante a fez rolar. A pressão da água rasgou as velas da proa, arrancando suas ferragens. Muita água entrou no barco que se reergueu muito lentamente. Por sorte ninguém foi levado pelo mar. Samuels não queria perder tempo. A tripulação temia mais o comandante que a morte. Também os outros dois barcos ficaram desorientados com o temporal. Quando o vento atingia o seu valor máximo, “Fleetwing" também rolou e todos os tripulantes que estavam no cockpit desprotegido foram levados pela água. Outros dois, na proa, conseguiram segurar-se ao mastro e foram salvos. Os outros 6, com botas e pesadas roupas de proteção contra o frio não foram achados. Durante 6 horas o comandante tentou infrutiferamente localizar os náufragos, quando então, sem esperanças, desistiu. 

"Vesta" ficou então na liderança, atingindo velocidade de até 14 KTS. Quando o vento diminuiu, "Henrietta", mesmo mais atrás, es tava em posição mais favorável: tinha "altura" suficiente para ultrapassar "Vesta" numa orça direta, deixando as ilhas Scilly a bombordo. No dia 24 de dezembro cruzou em primeiro lugar a linha de chegada junto às Needels, na entrada do Solent, depois de 13 dias e 20 horas. A tripulação estava totalmente exausta e desidratada. "Fleetwing" chegou em 2° lugar, mas ninguém a bordo estava afim de comemorações. “Vesta” perdeu-se na correnteza do Canal da Mancha e chegou bem mais tarde. O recorde do barco vencedor "Henrietta" foi mantido por 39 anos, até à regata Kaiser Pokal de 1905, vencida pela escuna “Atlantic”, em 12 dias e 5 horas, recorde este, por sua vez mantido por mais 100 anos, até maio de 2005.”

Por Geraldo Knippling

*O Minuano: setembro/2006 - nº 106