Em entrevista especial, o sócio Aderbal Torres de Amorim relembra travessia do Atlântico retratada no livro Quatro Mil Milhas Além

Mais de vinte anos após a publicação do seu livro em diário de bordo, o Comandante do veleiro Molecão fala sobre a experiência que iniciou nas Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, e finalizou no Caribe.

 

Sócio do Veleiros do Sul desde 1987, o Comandante Aderbal Torres de Amorim lançou no início dos anos 2000 o livro Quatro Mil Milhas Além, publicação em diário de bordo especial onde relata a travessia do Atlântico a bordo do veleiro Haaviti, navegando do Mediterrâneo até o Caribe.

No livro, o Comandante destaca os detalhes da experiência que zarpou das Ilhas Baleares e finalizou em St. Marteen, no Caribe, com todos os acontecimentos e condições enfrentadas durante a grande travessia. Em entrevista especial ao VDS, Amorim relembra os primeiros contatos com o mundo náutico e, claro, a experiência retratada no livro após mais de vinte anos de sua publicação.

Confira a entrevista com o Comandante Aderbal Torres de Amorim!

Qual foi a sua primeira ligação com o mundo náutico?
- Minha primeira ligação com o mundo náutico - e já era mais que quarentão! - foi com meu querido amigo Reneu Ries, no Aloha. Com ele, acompanhávamos as regatas de Optimist de nossos filhos - Lúcio e Leandro Ries e meu caçula Rafael.

Qual foi o primeiro veleiro em que você navegou e qual foi o seu primeiro veleiro?
 - O primeiro veleiro em que naveguei foi, exatamente, o Aloha. Meu primeiro veleiro foi o Noctiluca, um 30 pés de madeira, construído pelo saudoso Plínio Froner.

Sobre a travessia retratada no livro Quatro Mil Milhas Além, como foi o início da experiência após zarpar das Ilhas Baleares?
- Desde o início, juntamente com o Ralph Roenick (o Tatu) e com o Roberto Graeff, ainda nas Baleares, ocupei-me das tarefas de navegação, logo plotando na carta do Caribe dois pontos de chegada provável - Martinica e St. Martin (grafia da carta A-2, Puerto Rico to St. Christopher). Eram prováveis pontos de chegada: tendo por propulsão o vento, seria impossível navegar com certeza de um destino distante, em linha reta, “Quatro mil milhas além” do ponto de partida. É como escrevi sobre aquela incerteza:

Não sabemos sequer se iremos direto para St. Martin ou se faremos escala na Martinica. Ou, inclusive, se não iremos para outro ponto qualquer do Novo Mundo.

E arrematei com o óbvio:

Somos filhos do Mar e dependentes dos ventos: estes dirão onde e por onde ir.

E logo lembrei do saudoso Nego Márcio - com quem muito aprendi -, e recordei da primeira vez que o Tuchaua II foi para o Mar, 26.12.1991, no dia do meu aniversário! O Nego ensinava com maestria:

Que o meu respeito pelo Mar seja o dobro do prazer que tenho de nele navegar.

Em agradecimento ao Nego, escrevi alguns versos que estão no livro, dizendo, lá pelas tantas, a respeito do verdadeiro cio que ele tinha pelo Mar:

O Marcio tem pelo MAR, CIO
O cio que nele roça
Devagar dele se apossa
Avassalador, bravio
Inundando-lhe os porões
Da alma e do sentimento
Que faz do Nego isso aí ....

 E nos versos finais, sobre aquele trio maravilhoso que eram o Nego, a Claudia e o Tuchaua, e com os quais acompanhei, quase diariamente, a construção do grande veleiro:

E quando dali me aproximo
Meio assim pedindo arrimo
Torno a neles constatar
A convivência harmoniosa
E a síntese maravilhosa:
O barco, a mulher e o Mar...


O que mais lhe impressionou neste trajeto?
- Retomando a navegada, o que mais me impressionou nesse trecho foi Gibraltar. Saíramos de Majorca - onde estivera seis anos antes, na Copa del Rey - rumo à entrada do Mediterrâneo. O que seria uma velejada tranquila de 459 milhas só acabou após stops forçados. Um deles, na Ilha Gonejera, ao lado de Ibiza; o outro, em Dennia. A despeito dos dois robustos motores de popa, o fortíssimo vento de oeste fazia o Haaviti corcovear e quase nada andar para frente. E a corrente contrária é muito forte também.

Paradas imprevistas...

Ao fim da navegada atribulada, atracamos em Gibraltar, na Marina Bay, bem próxima à pista do aeroporto. Nesse stop visitamos, entre outros, o Europa Point onde “o mundo terminava”. Desde ali, avista-se, do outro lado do Mar, a 58 km de distância, a cidade de Tanger, no Marrocos, que minha Magra (Maria Denise, minha mulher) e eu, em outra ocasião, conhecemos.

O que mais surpreende no enclave de Gibraltar é a mescla populacional de árabes misturados com judeus, turcos, marroquinos, gregos, espanhóis, ingleses. Como em Tanger, do outro lado do estreito, é comum ali as pessoas de rua falarem três, quatro ou cinco idiomas. Jamais vira algo parecido a não ser, como disse, em Tanger.

Enfim, era uma sexta-feira o dia da partida. Logo, adiamos a saída para o dia seguinte: como sabido no mundo náutico, em sextas-feiras...

Qual foi a sensação ao chegar no destino final, em St. Maarten?
- Abreviando - já considerando vencida a perna Gibraltar-Canárias, em que percorremos um bom trecho da Costa da Mauritânia e suas perigosas incertezas -, saímos de Palmas, para a grande travessia, com a Gran Canaria pelo través, no sotavento daquela grande ilha. Com pouco vento, portanto, precisávamos da colaboração do motor de bombordo e seu desagradável ruído; "noblesse oblige"...

O grande trecho Canárias-Novo Mundo tentaria resumir dizendo o que realmente mais me impressionou na travessia propriamente dita: a grandeza do Mar e o contraste com nossa insignificância. Somos nada! Mas ainda assim predominam nos humanos a vaidade, a cobiça e, por isso mesmo, a insatisfação. Por não viver na simplicidade da natureza, o ser humano é um insatisfeito. No particular, sempre lembro Isaac Newton:

A natureza ama a simplicidade e não ostenta a pompa das causas supérfluas...

O gigante Mar (sempre com maiúscula) nos faz pensar ... somos nada.

Por tudo, a sensação de chegar ao destino final é o mais difícil desta entrevista. Resumi-a assim: dor e nostalgia; vitoriosa alegria. E escrevi:

É curiosa e tocante a constatação de que já não estamos mais velejando rumo ao Oeste. Nossa marcha terminou. Sinto um certo amargor em ver concluída a travessia, mas, ao mesmo tempo, um doce sabor de vitória por tê-la cumprido (...)
O tempo foi nosso grande aliado; não tivemos pressa e nem perdemos tempo. Não tivemos contratempo. Não adiamos decisões, nem precipitamos acontecimentos. O tempo foi nosso grande aliado (...) Vou sem pressa, sem temor, sem apreensões. Não há o que temer, nem mesmo a inexorabilidade do tempo. Ele é imutável e, por isso, vivo-o assim (...) Há coisas que não posso mudar e o tempo da razão me trouxe serenidade para sabê-lo. Estou sereno, estou feliz. Cruzando o Mar Oceano, acabei de fazer o que sempre quis.

E completei revelando o que o Mar me segredou enquanto nele navegava:
Quando o amanhã vier
E então eu já não mais puder
Fazer o que agora faço
Sei que a têmpera de aço
Do meu coração marinheiro
Indicará o rumo certeiro
Do porto do abrigo final
Onde nenhum vendaval
Já não terá sua vez
E no anonimato, talvez,
Serei com a mensagem do náufrago
Que ninguém sabe quem fez...

Sobre o livro, como foi o início da produção e qual foi a inspiração para escrevê-lo?
- A ideia do livro surgiu a partir, justamente, do diário de bordo um pouco “diferente” do usual que escrevi ao longo das quatro mil milhas percorridas desde Palma de Majorca, com stops de pernoites pelo caminho, e alguns dias em Gibraltar e depois nas Canárias (La Gomera, Lanzarote, Isla Graciosa, Tenerife e Lanzarote) onde a Denise (a minha Magra) foi passar alguns dias conosco naquele paraíso. 

Se pudesse mudar algo em relação a essa experiência, o que mudaria?
- A resposta é a mais fácil de todas: ao invés de três tripulantes, seríamos quatro! Minha Magra estaria a bordo todo tempo; afinal, não sou louco por ela?...

Mais de vinte anos após essa experiência, quais as principais diferenças que você destacaria do período da travessia e o período atual?
- Ora, passados mais de vinte anos, não foi só o “mundo náutico” que mudou. O Mundo mudou! Tudo mudou; menos nossas convicções e o indizível prazer de velejar. Nesse sentido, a vela é o que sempre foi e sempre será: a comunhão inigualável de navegar impulsionado pela força da natureza.

Mas eu não disse que “não foi só o mundo náutico que mudou”? Sim, disse. Mas essa atordoante mutação restringe-se aos avanços tecnológicos da navegação, ao aperfeiçoamento do GPS, das cartas náuticas, dos materiais. Sim, isso realmente mudou, e muito. Mas o que não mudou e jamais mudará são, como diz Camões,

 as súbitas trovoadas temerosas; relâmpagos que o ar em fogo acendem; negros chuveiros, noites tenebrosas; bramidos de trovões que o mundo fendem

Essas são, nas palavras de Camões, “as perigosas coisas do Mar que os homens não entendem”. E isso não muda e jamais mudará. Velejar - no fundo, no fundo - é o que sempre foi e será ... Nada melhor do que velejar no Mar e sua força invencível, sua beleza indescritível que me fizeram pensar:

Quem foi ao Mar e voltou nunca mais será o mesmo
Que me fez pensar: somos nada!